sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Viva a sociedade alternativa

Achei esse texto, folheando alguma revista de um pai de uma amiga. Apesar de que se pensarmos em informações sobre squats a matéria é bem superficial, gostei bastante da forma que foi estruturada, numa espécie de comparação entre uma squater e uma pessoa que leva uma vida de acordo com os padrões estabelecidos. Me fez refletir mais sobre coisas já pensadas e sobre coisas ainda não pensadas por mim.


“O fato de não trabalharmos não significa que não fomentamos reflexões, não geramos debates nem fazemos circular as idéias que assimi­lamos, lendo as centenas de revistas, livros e filmes que quem está ‘trabalhando’ produz – mas mal tem tempo de consumir...”
Enquanto eu tentava ordenar as minhas idéias para rebater tese tão original, num coffee shop ensolarado no meio da tarde de Amsterdã, Maria sem misericórdia fechou logo o ponto: “Somos a vingança tardia e bem-humorada que vive das brechas desse sistema... Já vocês, do ‘mercado de trabalho’, são a graxa do capitalismo moderno... sempre bem arrumados e descolados, mas ainda assim graxa”.
Fiquei perplexo. Nunca em minha vida fui chamado de graxa ou qualquer outro derivado de óleo e gorduras. Lá se foram sete anos desde a última vez que me encontrara com Maria, em Havana, Cuba. A mexicana, amiga desde uma temporada de Puerto Escondido, vivia na Europa há cinco anos. Nas cartas que trocávamos, que logo se transformaram em e-mails e SMS, ela me contava desse universo incrível em que vivia, em que um grupo crescente de pessoas, “jovens de todas as idades”, simplesmente não trabalhavam. Viviam em comunidades e invadiam casas, apartamentos e prédios abandonados nas principais capitais européias – um MST urbano. Uma vez lá dentro, a polícia nada mais podia fazer, e somente um longo e oficialesco processo de despejo, com ordem judicial e tudo, poderia colocá-los na rua. Mas isso podia demorar até cinco anos...
Nada disso é novidade: são os chamados squats, que hoje se espalham por todas as regiões da Europa: squats campestres, em lindas áreas no interior; squats balneários, às vezes à beira do mar e com direito a pé na areia; squats baladeiros, com festas intermináveis ao som do melhor do eletrônico; squats intelectuais, com um público mais velho, culto e tranqüilo; squats gays... Alguém que faça parte dessa comunidade pode correr a Europa inteira, ou ainda países como Índia e Israel, e se hospedar num squat, pois há sempre alguém que conhece alguém que convida o visitante para uma temporada. Apesar de ninguém pagar aluguel, água ou luz – é tudo gato –, há uma organização vigente e algumas regras no mundo dos squats, e, se você não foi convidado, simplesmente não pode ficar.
Novidade, para mim, foi conviver com um grupo de squaters por um weekend em Amsterdã e descobrir que meus preconceitos em relação à prática eram idéias equivocadas.


Vantagem?
Enquanto Maria me explicava como foi parar na Squatland, eu me pus a fazer um jogo infantil em minha cabeça comparando minha vida com a dela. Tivemos educações similares em dois enormes países latino-americanos, estudamos nos melhores colégios, viajamos bastante e conquistamos a independência da vida adulta na mesma época. Num resumo genérico e leviano, desenhei a seguinte panorâmica de nossas vidas atuais sob o ponto de vista dos dois lados da quadra:
Manhã – Eu acordo cedo diariamente, tomo banho quente, me visto ante uma variedade enorme de roupas a escolher, engulo um café apressado, passo o olho no jornal, entro no carro, pego trânsito, falo ao celular, contemplo paisagens que não escolho – geralmente medonhas, a não ser que você more no Rio –, entro num escritório com janelas e sem vista, ligo o computador, o ar-condicionado e começo a trabalhar. Ela acorda na hora que seu corpo deseja, toma um longo café, escolhe um bom livro, pega sua bicicleta, pedala tranqüilamente pela urbe arborizada, sempre escolhendo o caminho mais bonito, ouve música gerada de um velho discman, entra num parque, deita na grama sob o sol e começa a ler.
Almoço – Saio para almoçar por volta das 13h, entro num restaurante cheio, sento, peço um prato, tiro e-mails no BlackBerry enquanto espero, como rapidamente, converso sobre trabalho na sobremesa, pago uma pequena fortuna de conta enquanto engulo o café e saio apressado. Ela pára de ler seu livro por volta do meio-dia, monta em sua bike, pedala sossegada até uma feira de rua, espera pelo início do desarme das barracas, conversa com os vendedores – que já a co­nhecem –, recebe gratuitamente queijos, frutas, pães, verduras, salames e outras iguarias, abre um largo sorriso como forma de pagamento, caminha até uma praça, senta-se e come pausadamente.
Em seguida, acende um cigarro e abre seu livro de novo.
Tarde/noite – Quando não tenho uma reunião fora, volto para o escritório, reúno minha equipe, trabalho no computador sem pausas até a noite, desligo o computador, o ar-condicionado e a luz, dirijo pela cidade no trânsito, contemplo as mesmas paisagens, falo ao celular, chego em casa, tomo banho, saio para jantar, gasto outra pequena fortuna e eventualmente emendo numa balada, onde gasto outra (nem sempre pequena) fortuna. Ela guarda o que sobrou da comida para o café do dia seguinte, pedala até um museu gratuito, contempla obras de arte durante horas a fio, passa numa biblioteca pública, tira e-mails, troca de livro (lê em média um por semana), pedala até seu squat, toma um banho frio (nem sempre os squats têm água quente), pedala até outro squat maior onde uma baladinha foi armada. Se estiver precisando de dinheiro, ali ela tem a opção de trabalhar no bar: assim conseguiu comprar um motorhome usado. Essa rotina pode durar meses, e, quando ela já conheceu a cidade toda, simplesmente sobe em seu motorhome e pega a estrada até uma nova cidade ou país.
Outros pontos – Enquanto gasto horas em lojas estudando o preço de móveis e gadgets para decorar minha casa e minha vida, nunca sem gastar uma pequena fortuna, ela garimpa os lixos dos bairros mais nobres das cidades onde já encontrou (em ótimo estado) cadeiras, cama, roupas, discman, livros, CDs, enfeites, dinheiro... Durante um desses garimpos, que tive o prazer de testemunhar, ela encontrou uma belíssima gravura de Van Gogh intitulada Schoenen met veters, que hoje ilustra a mais nobre parede de minha casa. No fim do ano, junto todo o dinheiro que me sobrou e viajo por duas a três semanas, geralmente para algum lugar na Europa e... gasto uma fortuna. Ela, que já viaja durante o ano todo pela Europa ao seu bel-prazer, geralmente passa o fim de ano numa cidade grande, quando todos se foram e a cidade está vazia e agradável. Do ponto de vista político, eu, que me considero uma figura com formação avançada no assunto, faço questão de ler e discutir os temas em pauta e sempre voto. Ela, que só lê as manchetes dos cadernos especializados, “afinal já sabemos o que vão dizer”, não gasta tempo com o tema e, por prin­cípio, nunca vota – para minha tristeza, me dei conta de que esse seu boicote leviano acaba agredindo muito mais a cena política do que eu, com minhas teses infladas de mesa de bar. Do ponto de vista ecológico, sou um consumidor voraz e patrocinador das emissões de CO2 e outras mazelas, enquanto ela, por consumir quase nada e reciclar tudo o que eu e os meus descartamos, é uma exemplar cidadã do futuro.
A essa altura do campeonato, começo a ficar deprimido e abandono o jogo num deselegante WO...

Game x Game
Após um fim de semana atípico, quando conheci pessoas incríveis e hábitos desconcertantes, me dei conta de que novidade mesmo foi encarar minhas próprias escolhas sob nova perspectiva. Ao contrário do que imaginava, Maria não é uma jovem preguiçosa e sem ambição, e sim a prova viva de que existem outras maneiras de levar a vida, mesmo inseridos na loucura do capitalismo alucinado. E que devemos tomar cuidado com o julgamento instantâneo que fazemos ao deparar com alguém diferente – seja a figura em questão um índio, um me­trossexual ou um squater. E que até mesmo a prática da comparação, forma que escolhi para a construção deste texto, já é bastante capita­lista, conceitualmente falando, logo, um tanto ina­dequada. Ponto. Desisto. Adoraria ser um squater... talvez na próxima encarnação. Com licença, preciso tirar meus e-mails.

P.S. No caso de você estar curioso, a palavra squat significa
“aga­cha­mento” ou “aquele que se estabelece em terras públicas”.


*Giuliano Cedroni, historiador, jornalista e roteirista, foi diretor de redação da Trip por cinco anos. Atualmente dirige um núcleo de desenvolvimento de projetos na Prodigo Films, e trabalha desde os 16 anos...

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